Tuesday, February 19, 2008

Mas louco é quem me diz...

Há dias tenho a "Balada do Louco" em minha mente... numa vah tentativa de exterminar de vez essa música de minha cabeca, foi procurar a letra e encontrei um ótimo, lindo texto. Tenho que postar aqui:

Dizem que sou louco...

A mulher se aproxima do carro com uma tesoura na mão, gesticulando muito.


O susto logo é substituído pela surpresa: longe de pretender qualquer violência, a mulher procura seu próprio reflexo no vidro do meu carro, na minha janela, para cortar o cabelo.

Ela intercala tesouradas rápidas no pêlo já muito curto --sinal de alguma internação recente?-- com outros na própria roupa. Sim, cortou as calças nos moldes de um shorts e a blusa, como um top irregular, mas funcional --ambos escondiam suas "partes".

Enquanto o farol não abre, eu fico ali, sendo "olhado" por aqueles olhos vazios, que na verdade nem me notam, mas que procuram nortear a bizarra mudança visual em plena via pública.

O que se estabelece ali é um imenso vazio de entendimento numa imensidão de significados. A mulher olha e não me vê --nem sei sequer se vê a si própria; creio que não. Eu olho para a mulher e o que vejo nada me diz, porque é impossível entender o que aquilo tudo representa para ela mesma.

Como não poderia deixar de ser, as pessoas nas calçadas que presenciavam a cena riam. É sempre assim: na falta de coisa melhor para fazer, ri-se do que se convencionou chamar de loucura. O riso, na verdade, é um disfarce para o constrangimento ou a falta de entendimento daquele mundo particular e sem dúvida curioso, que a rigor só existe na cabeça do portador de transtorno mental --é assim que, no terreno do politicamente correto, deve-se chamar os loucos de outros tempos.

Rimos porque não sabemos o que fazer com eles. Não sabemos nem sequer o que fazer direito com parentes e amigos transtornados, o que dirá dos excluídos que perambulam pelas ruas? Porque no fundo não sabemos lidar com as diferenças, os diferentes, sejam deficientes, físicos, portadores de síndrome de down, depressivos, eufóricos...

Pior do que não saber o que fazer a respeito, há um equívoco mais problemático ainda: tratar a loucura de maneira romântica, como se o comportamento inadequado fosse fruto de uma maneira criativa de se colocar no mundo.

Talvez seja, quem sabe em determinados casos a coisa vá por aí mesmo.

Mas o que prevalece mesmo é o sofrimento, a dor da não aceitação, da rejeição social, da incompreensão do mundo tal qual ele se apresenta, de como esse mesmo mundo trata quem não consegue entendê-lo corretamente.

Por mais delicado que seja o tema, não deixa de ser fascinante pela imensidão de possibilidades de entendimento. A mim me fascina, e há um caso em particular que merece minha atenção e respeito.

Trata-se do compositor, cantor e pianista Arnaldo Baptista, líder e mentor do fantástico grupo Mutantes, trio formado ele, seu irmão Sérgio e por Rita Lee e que foi um marco da nossa música nos 60/70.

Um disco do grupo do começo dos 70 traz a canção "Balada do Louco", uma elegia da diferença, meio premonitória até, uma vez que o próprio Arnaldo, anos depois, teve um surto psicótico, pulou da janela de um hospital e nunca mais se recuperou completamente. Em 1996 ele regravou a canção no disco "Singing Alone" e o resultado é simplesmente fantástico. Além da beleza da melodia, a poesia é ao mesmo tempo libertária e instigante, como você pode ver a seguir

Balada do Louco(Arnaldo Baptista e Rita Lee)

Dizem que sou louco
Por pensar assim
Se eu sou muito louco
Por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz
Não é feliz

Se eles são bonitos
Sou Alain Delon
Se eles são famosos
Sou Napoleão
Mas louco é quem me diz
E não é feliz
Não é feliz

Eu juro que é melhor
Não ser um normal
Se eu posso pensar
Que Deus sou eu

Se eles têm três carros
Eu posso voar
Se eles rezam muito
Eu já estou no céu
Mas louco é quem me diz
E não é feliz
Não é feliz

Eu juro que é melhor
Não ser um normal
Se eu posso pensar
Que Deus sou eu

Sim, sou muito louco
Não vou me curar
Já não sou o único
Que encontrou a paz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz
Eu sou feliz!

Luiz Caversan, 52, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve para a Folha Online.

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